À medida em que a capacidade das UTIs de Santa Catarina chega ao limite para tratamento
da Covid-19, duas importantes cidades do estado, Itajaí e Balneário Camboriú, e um grupo
de médicos e médicas catarinenses apoiam supostos “protocolos de tratamento precoce” da
Covid-19 desprovidos de fundamentos científicos. Tais iniciativas estimulam a aplicação de
recursos de forma equivocada, geram falsas expectativas, falsa sensação de segurança na
população, impactam negativamente na adesão às medidas reconhecidamente eficazes de proteção
e prevenção do SARS-CoV-2, e, ainda, podem causar efeitos colaterais significativos.
Os municípios referidos estão implantando o que chamam de “tratamento profilático ao
coronavírus” com o uso de ivermectina, e a carta dos profissionais sugere sua ampliação
para todo o estado. Destaca-se que até o momento há apenas um estudo indicando que,
em laboratório (in vitro), a ivermectina pode inibir a replicação do vírus SARS-CoV-2.
No entanto, isso apenas ocorre em doses muito superiores às aprovadas e seguras para uso
em seres humanos. Esse mesmo medicamento já foi proposto para possível tratamento de outras
infecções como HIV, dengue, influenza e Zika Vírus, mas em nenhum caso apresentou resultado
antiviral eficaz e foi descartado em todas essas oportunidades. Além disso, na carta mencionam
“tratamento precoce da Covid-19” com vitaminas C e D, oligominerais como o Zinco e outros
medicamentos, tais como Cloroquina, Hidroxicloroquina e Azitromicina que têm ações comprovadas
contra outras doenças, mas não contra Covid-19. Os signatários da carta não apontam sequer um
estudo de qualidade que embase tais proposições.
Convém ressaltar que devido à alta taxa de recuperação espontânea da Covid-19 (cerca de 80% - 85%),
as eficácias terapêuticas desses produtos indicados só podem ser estabelecidas por meio de pesquisas
clínicas com grupos de comparação. Logo, o uso dessas substâncias para o tratamento de Covid-19 seria
experimental e só poderia ser realizado como parte de protocolos de pesquisa clínica para determinar se,
de fato, possuem efeitos clínicos comprovados para a doença em estudo. A Sociedade Brasileira de
Infectologia, em informe publicado em 30/06, menciona que “Os antiparasitários ivermectina e
nitazoxanida parecem ter atividade in vitro contra a SARS-CoV-2, porém ainda não há comprovação de
eficácia in vivo, isto é, em seres humanos. Muitos dos medicamentos que demonstraram ação antiviral
in vitro (no laboratório) não tiveram o mesmo benefício in vivo (em seres humanos). Só estudos clínicos
permitirão definir seu benefício e segurança na Covid-19.” Além disso, Schmith et al. (2020) afirmam
que, até o presente, não foi realizado estudo clínico com ivermectina e placebo em pacientes com
Covid-19, o que é um quesito importante de comparação segura. As autoras apontam que a dose ideal
de ivermectina não foi estabelecida e que mesmo doses de ivermectina de até 120 mg foram administradas
apenas a um pequeno número de indivíduos. A dosagem diária desse medicamento por períodos mais longos
(por exemplo, 14 dias) na dose aprovada só foi estudada em pequenos estudos para infecções graves.
Dados apresentados por Momekov & Momekova (2020) mostram a gravidade da constatação de que os dados
farmacocinéticos disponíveis de estudos de dosagem clinicamente relevantes e excessivos indicam que
as concentrações inibitórias de SARS-CoV-2 provavelmente não são atingíveis em humanos.
O conteúdo da carta e as ações das prefeituras citadas vão na contramão dos órgãos reguladores de
medicamentos do Brasil e do mundo, os quais pautam-se em critérios científicos para garantir a
segurança dos pacientes e o bem-estar da população. Cita-se como exemplo a Food and Drug
Administration (FDA), agência federal reguladora dos Estados Unidos da América, que em 15 de
junho de 2020 revogou a autorização de uso emergencial da cloroquina e da hidroxicloroquina para
tratamento da Covid-19 fora de ambientes hospitalares e fora de contexto de pesquisa (FDA, 2020a).
Além disso, a FDA não indica o uso da ivermectina para prevenção ou tratamento da Covid-19 e, portanto,
não autoriza o uso off label desta para Covid-19 (FDA, 2020b). A própria FDA aponta alguns dos efeitos
colaterais que podem estar associados à ivermectina, os quais incluem erupção cutânea, náusea, vômito,
diarreia, dor de estômago, edema facial ou dos membros, eventos adversos neurológicos (tonturas,
convulsões, confusão), queda súbita da pressão arterial, erupção cutânea grave potencialmente exigindo
hospitalização e lesão hepática (hepatite) (FDA, 2020b).
O reposicionamento de medicamentos existentes para uso no tratamento da Covid-19 é uma
estratégia importantíssima, mas só é viável quando há comprovação de eficácia e segurança de
uso - com estudos de gradientes de concentração clinicamente relevantes e garantia de maior
benefício em comparação à não utilização.
Cabe observar que a solicitação dos médicos e médicas em carta aberta é problemática também
em outros pontos. A requisitada autonomia médica sempre esteve preservada, pois não é vedado
ao profissional médico prescrever vitamina C ou D, ou nenhum dos medicamentos citados; o que
não se pode é assumir que estes são tratamentos precoces eficazes contra a Covid-19. Portanto,
é imprudente o apoio a protocolos para que toda população tenha acesso facilitado a tratamentos
os quais não tiveram eficácia comprovada especificamente contra a Covid-19. Neste caso, a automonia
que está em risco é a dos pacientes, que tomariam decisões sobre seu tratamento baseadas em opiniões
e não em fatos comprovados cientificamente. Ao serem estabelecidos protocolos municipais, estaduais
ou nacionais sem comprovação científica contraria-se a lógica da medicina baseada em evidências e
os próprios princípios da ética médica, tais como primum non nocere (em primeiro lugar, não cause
dano) e in dubio abstino (na dúvida, abstenha-se de tratar). Portanto, além de imprudente, o referido
apoio ao protocolo é antiético e irresponsável.
De fato, o cenário de Santa Catarina é preocupante e requer ações coerentes e baseadas nas
melhores evidências. Exatamente por isso chama a atenção que em nenhum momento os médicos e
médicas mencionam na carta, e os prefeitos em seus comunicados, ao menos uma medida eficaz
para o controle da Covid-19, tais como testagem em massa e contact-tracing para isolamento
e quarentena, distanciamento social e uso de máscaras por toda a população. Até o momento,
essas são as únicas medidas com evidências científicas e aplicadas em diferentes países que
possibilitaram reduzir o número de infecções, de internações hospitalares, de óbitos e a
reabertura de setores da economia. Concordamos com os médicos e médicas que assinam a carta
que “esse momento exige que façamos o tratamento conforme o que temos de evidências
disponíveis até então”. Mais uma vez, e exatamente por isso, devemos fazer uso de medidas
que de fato irão ajudar no enfrentamento da Covid-19.
Uma última, mas não menos importante questão: as propostas/ações aqui em pauta não prezam
pelo bom uso do recurso público, pois drenam investimentos que deveriam ser aplicados na
ampliação das ações que comprovadamente auxiliam no controle da epidemia. Acabam, assim,
por potencializar e agravar a crise sanitária que vivemos, causar efeitos colaterais indesejados
em quem se submeter ao suposto “protocolo profilático”, além de retardar o controle da epidemia e,
consequentemente, o retorno pleno dos setores econômicos e da vida social.
O esforço de cientistas de todo o mundo tem permitido a contínua produção de novos conhecimentos.
Protocolos e condutas clínicas devem ser reavaliados continuamente, mas sempre com ética e
responsabilidade, baseando-se nas melhores evidências científicas disponíveis no momento.
Florianópolis/SC, 07 de julho de 2020.