O que se espera de um plano nacional de vacinação?
I - Populações vulneráveis que devem ser priorizadas
Um dos poucos pontos claros do plano são os grupos atendidos em cada fase da vacinação. No entanto, a definição dos grupos priorizados pelo MS, levando em conta critérios apontados nas diretrizes da OMS, excluiu algumas populações vulneráveis, como por exemplo a população em situação de rua, população privada de liberdade, populações ribeirinhas e quilombolas. O plano não justifica essas exclusões.
II - Planejamento nacional em articulação com estados e municípios
O plano apresentado considera o uso de uma única vacina, a Oxford/AstraZeneca, além das doses a serem obtidas por meio da participação do país no consórcio COVAX. No entanto, não há previsão de cronograma de entrega pelo consórcio. Destaca-se que quatro vacinas realizaram sua fase 3 em território nacional (Oxford/AstraZeneca, CoronaVac, Pfizer/BioNTech e Janssen), e que uma delas (CoronaVac) terá cerca de 46 milhões de doses disponíveis no Brasil até fevereiro de 2021, a princípio destinadas a atender a população do estado de São Paulo. Esta vacina passaria a ser produzida no segundo semestre do ano no Instituto Butantan, para atender à demanda nacional. Quando o MS apresenta um cronograma que desconsidera 46 milhões de doses com possibilidade de oferta no Estado de São Paulo no primeiro trimestre de 2021, demonstra de antemão que o cronograma e planejamento logístico não dialogam com os estados e municípios.
Um plano nacional de imunização precisa ser amplamente discutido com a sociedade brasileira e pactuado com os gestores nos 3 níveis de governo (federal, estadual e municipal). A omissão de um nível pode levar, como já se tem observado, a que diversas ações isoladas passem a ser executadas, o que acarretaria um processo descoordenado e potencialmente arriscado e ineficiente. Esse cenário é indesejável e incompatível com o histórico de imunizações no país, que possui cerca de 60 anos o Programa Nacional de Imunização (PNI), extremamente bem-sucedido. Além de consequências na saúde, a falta de coordenação entre os gestores poderá causar ainda confusão na população, aumento dos gastos públicos e ampliação dos desafios logísticos.
III - Diversidade de opções de vacina
É importante não descartar outras opções de vacina para a população brasileira.
Além de desconsiderar as vacinas a serem importadas e produzidas pelo Instituto Butantan, o plano proposto também ignora as demais vacinas em produção no mundo, limitando e retardando o acesso da população brasileira a essas opções de vacinação. Neste sentido, destaca-se a afirmação do Ministério da Saúde de que não fará compras de vacinas que demandem redes de frio com exigência de temperaturas mais baixas, como é o caso da vacina da Pfizer/BioNTech (< -70ºC), cujos resultados de eficácia foram melhores até o momento. A Moderna, companhia que também divulgou resultados de eficácia semelhantes, informa que a vacina pode ser conservada em temperatura de geladeira por 30 dias e à temperatura de 20°C negativos, por 6 meses. O plano federal é, inexplicavelmente, pouco ambicioso neste quesito.
IV - Logística de insumos e distribuição
Além da produção da vacina para duas doses por indivíduo, a operacionalização da vacinação demanda outras questões logísticas fundamentais, como a aquisição de insumos diretamente ligados à aplicação da vacina (seringas e agulhas, por exemplo), o transporte e a conservação da vacina. Faz parte da ação de conservação, por exemplo, assegurar a cadeia de frio, ou seja, a garantia de que as vacinas serão mantidas em temperatura adequada em todo o processo que vai da produção até sua aplicação na população. Estes insumos devem ser disponibilizados em tempo hábil para que não haja comprometimento do cronograma de vacinação.
Para que toda essa operação aconteça, é fundamental fortalecer a capacidade de estados e municípios a fim de que estejam devidamente preparados no momento de receber o quantitativo de doses de vacinas e de insumos previstos. Os municípios precisam contar com o devido apoio das Secretarias Estaduais para se organizar e para ter plenas condições de montar as diferentes estratégias de vacinação, sejam em postos fixos ou volantes, em pessoas acamadas, área rural, nas instituições de longa permanência, esquema drive-thru, etc.
Estas e muitas outras questões relativas à aquisição dos insumos para aplicação, transporte e conservação das duas doses da vacinas, assim como as relativas à logística para distribuição e aplicação das vacinas, não foram contempladas no plano de vacinação apresentado pelo Ministério da Saúde.
V - Comunicação com a comunidade científica e com a população
O planejamento da vacinação e a sua posterior implementação deve se basear nas melhores práticas de participação social, garantindo o acesso dos pesquisadores, jornalistas e da população em geral à análise dos resultados da investigação de qualquer vacina a ser licenciada no país. Isso inclui, além do acesso às principais informações de estratégias e práticas, o monitoramento cuidadoso durante e após o processo de vacinação. O acesso e a transparência são fundamentais para uma avaliação científica dos dados da eficácia e efetividade de cada vacina, de forma a garantir sua maior qualidade e segurança.
O governo brasileiro não tem apresentado publicamente documentos que justifiquem claramente as decisões tomadas. Entre esses, destacamos como fundamentais: os estudos que embasaram esse plano, a disponibilidade de diferentes vacinas, a escolha dos grupos populacionais, o número de doses disponíveis e como se dará a distribuição no país e a aplicação pelos serviços de saúde do sistema público. Também é preciso que haja uma estratégia bem construída para lidar com as mensagens falsas e a desinformação que podem ocorrer antes e durante a vacinação, arriscando comprometer a cobertura vacinal no país.
Tampouco foi apresentado um plano de capacitação e orientação teórica e técnica para as equipes de saúde estaduais e municipais, que seja específico para esta campanha, incluindo a vigilância de possíveis eventos adversos e seu devido registro no sistema de informação, no sentido de instrumentalizar uma vigilância ativa e competente para observar, detectar e investigar potenciais eventos adversos às vacinas, bem como sua eficácia, a médio e longo prazo. Esse tipo de vigilância já existe no Brasil para outras doenças, mas no caso da COVID-19 torna-se ainda mais relevante, visto o pouco tempo de acompanhamento dos participantes nos atuais estudos vacinais de fase 3.